“Entra,
chegaste à tua casa”: assim entrou Camões na vida de José Saramago. No momento
em que Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura de Portugal, anunciava a José
Saramago que lhe tinha sido concedido o maior galardão literário da língua
portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela gritou a pedir ajuda. Os
que estávamos em casa saímos para a rua e vimos que o animal feroz era um
cachorro assustado com o susto da mulher. O animal entrou pela porta aberta do
jardim, mexendo sem jeito as pernas, um pouco desajeitado, feliz por ninguém o
maltratar. Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha recebido o Prémio
Camões, soubemos, soubemo-lo nesse instante, que o cão que tinha encontrado a
sua casa não ia ter outro nome que o do grande poeta português. E assim, pelo
menos em Lanzarote, Camões foi mencionado centenas de vezes por dia, foi vida e
foi homenagem. E este cão doce e nobre, que nunca aprendeu a comer devagar
porque até chegar à Casa tinha tido que lutar contra a fome e o abandono, com a
sua gravata branca desenhada no pelo negro, que foi o modelo para “O Achado” d’
A Caverna, um cão que, como todos os cães que Saramago inventa, é a melhor
resposta animal à melhor consciência humana, morreu com todos os seus anos e
sempre amado.
Quando
o cão chamado Camões regressou a casa depois da morte de José Saramago, não
conseguiu aceitar a ausência. Esteve inquieto durante o dia, mas quando chegou
a noite e não viu o dono nem na cama nem no sofá que ocupava habitualmente,
quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos, quando
percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte, uivou,
gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la. Não bastaram
abraços para consolá-lo, nem palavras carinhosas: ia e vinha de um lugar para
outro, numa correria que partia o coração, gemia com uma dor humana. Por isso,
um amigo que estava lá em casa e ali passou a noite, intitulou no dia seguinte
a sua coluna jornalística: “Camões chora por Saramago”.
Saramago
já não poderá chorar por Camões, agora que morreu tão docemente como viveu, tão
honestamente animal que apetece aprender com a sua forma de estar na vida. Ou
talvez, sem chorar, se encontrem na sensibilidade criada que nada nem ninguém
pode destruir, porque tanta vida partilhada, e em companhia tão amável, não
pode perder-se. Estão por aí, em livros e memórias, em corações que não se
rendem, José Saramago com os seus três cães, Pepe, Greta e Camões, pondo beleza
no mundo, imortais na vivência pessoal dos que sabem ver e também sentir.
Pilar
del Río - por ocasião da morte de camões, uns dos cães de saramago e que inspirou-lhe passagens literárias inesquecivelmente densas
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