Monday, October 22, 2012

cão de saturno: ou foram-se os anéis e ficou a escrita bom pra cachorro


Elsa Morante, “Cão”, 1939






Elsa Morante
Cão

O meu cão nasceu sob o signo de Saturno. Vocês saberão, espero, qual estranha cor de dias, verde lívido estriado de roxo, amarelo e sanguíneo, cabe a quem nasce com esse signo. Nele se sentia contínua a presença do astro natal: era diferente dos cães habituais. Iremos chamá-lo de “Ele”, para diferenciá-lo do outro, que inesperadamente entrou na sua vida, esmagando-a.
Enchia, quem o olhasse, de admiração e de compaixão; às vezes, de um tormento inquieto. Tinha um comportamento humilde e afetuoso; e todos eram seus donos, no sentido de que o amor por todos os homens, especialmente se grandes e robustos, o consumia. Se rechaçado, desviava-se rapidamente, com os olhos cheios de pudor angustiante: daqueles olhos a humilhação fazia correr lágrimas de pena, de uma cor turva, como se estivessem quase mesclados de sangue. Para animá-lo, tratando-o como um cão, a fúria vital o possuía, fictícia, e começava a pular com gracejo de ambição ansiosa; mas nem mesmo dessas brincadeiras a dor se ausentava. Esse eco surdo era impossível de ser esquecido na sua voz. Ria, às vezes, com um riso agitado, com a língua pendente e as orelhas baixas. Na noite de lua cheia cantava com uma voz baixa um hino selvagem, lamentoso.
Por que não dizê-lo? Era viciado e vil. Nas suas pupilas, prestando bem atenção, além do amor e da nostalgia absurda de ser um cão, percebia-se uma covardia desesperada, atávica. Sei que se agarrava naquela sua raiz de covardia, consumindo a sua vida, sem trégua. Acrescento que ninguém, naquele país humano e infantil, poderia reprovar nele a existência de uma coisa desse tipo: todos, não digo que não se dessem conta dela, mas queriam esquecê-la. Aliás, com respeito pudico, removiam dele a ocasião de revelar a sua raiz pálida. A um animal que sabia rir e chorar e que conhecia a arte do canto, nenhum homem, ou cão, nunca poderia perguntar-se se sabia excitar-se. Eu já o disse, era viciado. Procuravam-no como guia (era um erudito que, farejando, descobria as ruínas antigas); chamavam-no de “belo”, embora fosse um simples cãozinho bastardo. Os malandros lhe ofereciam pão molhado e as jovens lhe davam tanta carne crua que uma vez ele teve uma dermatite. É preciso admitir, nesse ponto, que ele não gostava muito de tomar banho. Ficava feliz quando escutava a palavra “belo”, e ria, agitando a língua.
Tinha aproximadamente dez anos, quando um dia, subindo por uma escada de pedra, se deparou com um lindo cão, quase um urso, que lhe disse: “Eh!”. Por que não chamá-lo, de fato, “um lobo”? A fera vibrava e tinha sobressaltos em cada músculo, e rosnando umedecia as suas gengivas. Não havia naquele “Eh”, nem mesmo a condescendência de um desafio, mas uma certeza indiferente, a promessa feita a si mesmo de um jogo rapidamente realizado. Ele riu, para acalmá-lo e para fingir a brincadeira, mas sentiu sob as suas patas, na terra, aquela raiz entorpecida raspar. O outro tampouco notou a novidade divina daquele riso, e sacudiu a cabeça em que faltava todo sentido de urbanidade graciosa, de respeito tenro e de costumes habituais; sacudiu-a assim como se sacode um badalo de sino num dia de vitória. Pois bem, ele tentou demonstrar todas as suas bravuras, e para começar cantou. Conheço as cordas que podia tocar em casos semelhantes, e estou certa que cantou A oliveira lunar. Mas o que essa canção podia significar para o outro? Há séculos, uma voz parecida com uma risada, cheia de desprezo furioso e feliz, chamava os seus pares, e tal era a lei: “Retiremos da terra essas crostas inúteis”.
Ele foi, então, todo covarde, que, em forma de fúria, riu, o outro, esbaforindo, o atacou em cada poro. Começou a chorar aquelas suas lágrimas avermelhadas extravagantes e ativas, e, na boca sentiu um sabor amargo e macio que era para si mesmo uma vergonha, tanto que eu poderia chamá-lo de “sabor de cão”. O outro disse: “Eh! Eh!”.
Ele se deixou vencer por uma solidão estúpida e cansada. E por todos os ossos tremendo de febre e de repugnância, esperou o primeiro salto do outro.
Depois desse breve ataque, retomou o caminho de casa. A covardia não estava mais ao seu lado, mas a morte que latia, e cantava o mais belo hino, que nunca tinha nascido dele, terrestre e negro como sangue turvado, porém invencível como a noite. A morte o acompanhou até em casa. Ali, o servo se inclinou sobre o seu corpo, sem olhos, cheio de feridas asquerosas; e, vendo-o todo exaltado pelo combate e pelo sangue, gaguejou sobre ele: “Morto matado, pobre animal”.
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Elsa Morante, ”Cão”, in Opere. A cura di Cesare Garboli e Carlo Cecchi. Volume primo. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1988, p. 1693-1695, tradução Davi Pessoa. Os contos de O jogo secreto foram publicados entre os anos 1937 e 1941 em várias revistas italianas. O Cão foi publicado na revista “Oggi” no dia 30 de setembro de 1939. O livro foi editado por Garzanti na coleção “Il Delfino”, em 1941, sendo o primeiro livro publicado de Elsa Morante
(por davipessoa)

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Thursday, October 04, 2012

outros já fizeram o que não invalida mais este bom pra cachorro



a foto faz parte de um projeto de um fotógrafo que documenta -e inventa- atividades e poses para seu cachorro. a ideia não é original. mas isso não quer dizer que não é boa. as fotos dezenas e dezenas, são muito interessantes. perfeitas para quem gosta de cães e fotografia.
http://maddieonthings.com/