Friday, May 16, 2014

bom pra cachorro? talvez "romeo" não ache



Meu cachorro e eu disputamos a mesma mulher. É o que dizem os especialistas que consultei: ele me ataca porque quer minha namorada. Segundo as explicações que me deram, ele não consegue evitar tal comportamento; algo em sua essência o obriga a lutar pela liderança da matilha e, como chefe, considera que Lucía – minha companheira – lhe pertence. Não tem conversa. No mundo canino, a democracia é impossível: a organização do grupo é hierárquica, e os machos brigam pelas fêmeas como se fosse por bifes.
Há um líder que come, trepa e manda, e outros que olham, esperam e obedecem. O mais curioso é que essas regras não se restringem ao mundo animal. Para um cão, o espaço doméstico é sua matilha. Portanto, para Romeo – meu cachorro –, Lucía e eu também somos cães e temos de nos comportar de acordo com suas regras. Romeo é dominante por natureza. Por isso – e porque não consegui impor minha supremacia –, ele disputa comigo todos os recursos: comida, cama e principalmente a fêmea.
Reconheço que não tenho – nem me interessa ter – alma de caudilho. Sempre preferi acompanhar em vez de dirigir, dizer sim ou não em vez de propor, mandar ou sobretudo trabalhar. Parece que é justo isso o que perturba Romeo. O etologista Claudio Gerzovich Lis, um veterinário especializado em comportamento, vulgarmente conhecido como “psicólogo de cachorros”, me explicou que, nas matilhas, o líder – quase sempre um macho – não costuma levar vida mansa: por obrigação genética, mas também por aprendizagem, ele se sente impelido a fazer todo o trabalho enquanto os demais descansam.
Nunca movi uma palha para reivindicar esse posto. Se eu fosse um cachorro, tenho certeza de que seria daqueles tipos que ficam deitados à espera de que outros tragam a comida. Mas eu não sou um cachorro e agora me vejo forçado a mudar a situação. Romeo precisa entender que não pode nem deve me agredir; não é necessário, eu posso arcar com as necessidades do grupo. Tenho de provar para ele que sou o líder da matilha. Disso depende nossa convivência.
Os três – Lucía, Romeo e eu – moramos na mesma casa e até pouco tempo dormíamos na mesma cama. Agora não mais. Ele não pode dividir o leito conosco: segundo Gerzovich Lis, eu botei um sujeito na minha cama, entre minha mulhere eu. E não foi um camarada qualquer: foi o “Chefe do Estado-Maior”.

Hoje sei disso, mas quando tudo começou eu não podia imaginar. Quando vi Romeo pela primeira vez, ele estava encolhidinho dentro de uma mochila preta, tremendo de medo, nos braços de Lucía. Eram os primeiros minutos de sua vida longe da mãe – uma cadela desnutrida que o amamentara a duras penas –, e ele estava vivendo aqueles momentos no colo da minha namorada. Lucía tinha visto na internet – num site de animais recolhidos na rua – a foto de um filhote marrom, fitando a câmera com seus olhos azuis e a cabecinha inclinada, e tinha se apaixonado. Foi procurá-lo e o enfiou em sua mochila, para aquecê-lo. Passou no meu trabalho e tomamos um táxi para ir para casa, na época um quarto e sala, sem área de serviço nem sacada. Nunca havia tido certeza se queria me responsabilizar por uma vida até o momento em que carreguei aquele cachorrinho. Sua barriga estava inchada de vermes e seu rabo parcialmente sem pelos, por causa da desnutrição; quando eu o abraçava, ele parava de tremer.
Na primeira noite, ele dormiu numa caixa. A cada vinte minutos acordava aos berros, chorando. Quando eu me levantava, ele abanava o rabo. Eu ia até a caixa, deitava-o e o afagava até ele fechar os olhos e relaxar. Então voltava para minha cama. Mas assim que o cãozinho percebia que eu não estava mais ao lado dele, tornava a uivar como a sirene de um caminhão de bombeiros. Logo de manhãzinha, disse a Lucía que não suportaria mais uma noite como aquela: se o filhote continuasse chorando, precisaria ir embora.
Mas na segunda noite ele não chorou. E tivemos de procurar um nome para ele. Depois de algumas tentativas fracassadas, optamos por Romeo.
O veterinário disse que, durante os primeiros três meses, o filhotinho não poderia sair de casa, pois não tinha todas as vacinas. O animal vivia as 24 horas do dia entre a sala e a cozinha. Sua presença não passava despercebida. Desde o começo soubemos que seria um cachorro de porte médio, pouco menor que um labrador. Com o tempo, superou as expectativas, transformando-se num cachorro bonito, forte e atlético. Era lindo, e causou um rebuliço em nossa vida.
Quando ficava sozinho, Romeo roía os pés das cadeiras, engolia a madeira, que então era transformada em merda, para ser mais uma vez deglutida. Fazia xixi no assoalho. Quando completou seis meses, era evidente que o apartamento tinha ficado pequeno. Todo dia, na volta do trabalho, encontrávamos um novo rasgo na poltrona e Romeo descansando num leito de pedacinhos de espuma. Ele fazia tudo errado, mas sempre o desculpávamos. Não podíamos nos zangar com ele. Houve dias em que Lucía e eu adiamos a saída do escritório para evitar chegar antes do outro e ter de enfrentar o desastre. Então resolvemos procurar um lugar melhor para viver: rescindimos o contrato do apartamento e alugamos uma pequena casa com quintal, onde o cachorro poderia viver mais à vontade, sem espalhar xixi no piso de madeira quando fôssemos trabalhar.

Nessa época Romeo dormia na nossa cama, subia na poltrona, comia a mesma comida que nós, recebia carinho sempre que queria e brincávamos quando ele resolvia. A soma de seus privilégios totalizava a de nossos erros. Deixamos que ele tomasse todas as decisões: quem deitava na cama e quem não. Quem entrava no quarto e quem não. Quem podia subir na poltrona e quem não. Entre os que podiam, sempre estavam Lucía e ele. Eu costumava ser aquele que não podia.
O mais estranho é que essa discriminação não chegava a me incomodar. Porque àquela altura eu já tinha um afeto desmedido pelo animal, e porque não acredito na organização da família nos velhos moldes, com o homem a tomar as decisões e a mulher a acompanhá-lo. Acredito numa convivência horizontal, e isso inclui os animais de estimação – nunca entendi o conceito de “animais de estimação” –, por isso me negava a ver Romeo como um ser inferior que me devia obediência em troca de casa e comida. Eu queria dividir tudo, ser uma família pós-moderna. E isso começou a nos deixar confusos, a nós três, sobretudo Romeo.
O cachorro passou a comandar certas situações com rosnados, e eu dava risada. Até que começou a me morder, e de nada adiantava persegui-lo pela casa às chineladas. Lucía e eu nos demos conta de que alguma coisa estava errada. Não era normal um cachorro morder o dono.
Logo nos indicaram uma etologista. O método de trabalho seria assim: ela viria em casa, analisaria o hábitat do cachorro e nos daria um diagnóstico, com algumas dicas de comportamento. Resolvemos chamá-la. A mulher chegou e foi logo contando que era bipolar, que tinha acabado de recolher um gato da rua (que estava no carro), e que seu cachorro sempre mordia a mãe dela no rosto. Quanto a nós, disse que o problema não era grave, que podia ser corrigido. E desfiou umas dicas que eram exatamente iguais a tudo que eu já tinha lido na internet. Ela falava ao mesmo tempo que Romeo lambia seu rosto. Parecia entupida de psicotrópicos. Não voltei a procurá-la.
Consultamos outro etologista. Numa tarde de calor sufocante, recebemos Claudio Gerzovich Lis, que é também um famoso adestrador. Diferentemente da outra, Gerzovich Lis nos instruiu para manter Romeo trancado quando ele chegasse. Fizemos como ele pediu. Conversamos na sala por mais de uma hora. Tomamos Tang enquanto confessávamos tudo o que havíamos feito de errado: que o cachorro dormia na nossa cama, que comia do nosso prato e que, quando rosnava, achávamos que era uma gracinha de criança. A certa altura Lucía tentou dizer alguma coisa, e eu a interrompi.
“Ei, um momento, isso me interessa. Vocês brigam por causa do cachorro?”
Gelei. Por um momento, tive medo de me ver no meio de um talk show sem câmeras. Percebi que não podia dar mole: o tal dr. Gerzovich Lis era um sujeito curioso demais para o meu gosto. A conversa se esticou mais um pouco, até que ele me disse para deixar o cachorro entrar. Assim que abri a porta da cozinha, Romeo atravessou o quintal correndo e foi direto para a sala farejar o visitante. Mas cometeu um erro: pôs as patas em cima dele. O etologista o afastou com um safanão e gritou “Sai!”. Isso despertou a fera. Nos quinze minutos seguintes, Romeo ficou escondido, arreganhando os dentes, latindo e rosnando para o intruso que ousava dizer, em sua própria casa, o que ele podia e não podia fazer. Por mais que o etologista tentasse demonstrar que não o agrediria, não houve jeito de o cachorro abandonar sua atitude violenta.
O diagnóstico foi muito mais pessimista que o anterior: viver com Romeo implicava um risco grande para os três. Era preciso decidir se estávamos dispostos a corrê-lo. Gerzovich Lis disse que entre as alternativas que se ofereciam, caso o problema não fosse resolvido, estava a eutanásia. Lucía chorou. Tratei de cortar aquela conversa rapidinho: se eu era contra a pena de morte para homens que nem conheço, que diria para um cachorro que vivia na minha casa. O doutor então receitou Fluoxetina e nos proibiu terminantemente de franquear os móveis a Romeo. Desse dia em diante, lugar de cachorro era no chão.
Romeo teve certa dificuldade em se adaptar às novas regras. Vez por outra, ainda ameaçava me atacar e, quando eu o mandava sair da sala, obedecia contrariado. Percebi que estava mais tenso que de costume. Mas o método de Gerzovich Lis parecia estar funcionando: se eu ficava quieto e lhe falava com calma, ele continha a agressão, e cada um voltava para o seu canto.
Até que um dia tudo mudou para sempre.

Romeo estava no quintal – postado ao lado de Lucía, que colocava roupa suja na máquina de lavar –, e eu estava de saída para o escritório. Sou jornalista, mas até recentemente trabalhava na área de comunicação de uma fábrica de eletrodomésticos e computadores. Uma das piores coisas daquele emprego era que me obrigava a me vestir como um yuppie. Toda manhã, depois de tomar banho, eu precisava passar uma camisa, o que significava me dedicar a uma tarefa que piorava meu mau humor habitual. Portanto, naquele dia, como em todos, eu estava saindo de casa apressado, de cabeça baixa e com cara de poucos amigos. Então aconteceu.
Quando me aproximei da porta, vi que o cachorro estava de orelhas em pé. Ele veio correndo na minha direção e me olhou nos olhos. Tinha as patas dianteiras enrijecidas, todo o pelo arrepiado e as pupilas dilatadas. Começou a rosnar e a mostrar os dentes. Fiz o que Gerzovich Lis havia dito: fiquei imóvel, respirei fundo e lhe falei com calma. Romeo parou de rosnar e se virou para lamber o rabo, dando o episódio por encerrado. Continuei a andar, e foi aí que ele deixou claro que aquilo tudo não era uma travessura de cachorrinho mimado: abocanhou minha mão e, antes de soltá-la, mordeu-me três vezes. Gritei de dor. Instintivamente, dei um chutão no animal.
Fui ao banheiro lavar a mão ensanguentada. Tinha os dois caninos bem marcados na altura do pulso e mais algumas feridas que eu mesmo havia provocado ao dar o tranco. As marcas eram profundas, portanto resolvi ir ao hospital. Quando olhei para o quintal, vi uma mancha vermelha: o cachorro urinara sangue. Lucía estava se trocando, aos prantos, desesperada. Dizia que não devia ser nada sério, que voltando do hospital veríamos o que ele tinha. Antes de sair, jogou um balde de água sobre o sangue de Romeo, que escorreu pelo ralo.
No ônibus a caminho do hospital, eu não parava de pensar no cão, com medo de ter estourado seus rins ou a bexiga, desejando profundamente que ele não morresse, que pudéssemos levá-lo ao veterinário. No hospital me fizeram uns curativos rápidos, me deram vacina antitetânica e me aconselharam a pensar bem sobre o que fazer com o cachorro. Meu pai, que trabalha lá, repetiu várias vezes que eu devia procurar uma solução definitiva para o problema e que Romeo não podia mais viver conosco.
De volta para casa, imaginei que ao entrar nos depararíamos com uma grande poça vermelha, e no centro dela estaria o cachorro, ferido de morte, olhando para mim com cara de “O que você fez comigo?”. Mas cheguei, abri a porta com um empurrão, corri os olhos pelo ambiente e vi que o quintal estava intacto e que Romeo estava sentado em cima de uma cadeira, com a maior cara de pau. Fiquei me perguntando se ele já teria esquecido tudo ou se guardaria alguma lembrança da minha reação animal. Tratei de levá-lo logo para a rua para que mijasse numa árvore e eu pudesse verificar a cor da urina. Estava amarelinha. A culpa, que podia ter sido eterna, durou dois dias. Nesse meio-tempo, entendi que, de fato, Romeo e eu corríamos perigo. Conversei com Lucía. Concluímos que o cachorro precisava sair de casa.

Durante três dias, chorei mais do que em toda a infância. Chorei em casa, no ônibus e, o pior, chorei no trabalho. Não podia assimilar a ideia de que meu cachorro tinha se transformado numa fera que me agredia sem motivo. Mas, acima de tudo, não podia pensar que logo ia chegar em casa e não haveria pelos por todo lado, nem bolas mordiscadas, e ele não estaria me esperando para passear. Quando a angústia diminuía, tratava de pensar no lado bom da situação: que Lucía e eu poderíamos viajar sem ter de procurar um local para deixar o cachorro, que iríamos dispor de mais tempo para ler e escrever, que meu sobrinho poderia vir em casa e brincar livremente. Mas dali a pouco o choro voltava, porque não é fácil arranjar uma nova casa para um cachorro que mordeu o próprio dono.
As opções eram um hotel para cães, onde Romeo viveria preso numa jaula e só sairia de quando em quando para caminhar no parque – como uma penitenciária para cachorros –, ou uma fazenda onde pudesse correr à vontade e não tivesse com quem interagir. Como não conhecíamos ninguém que tivesse uma fazenda, as perspectivas não eram nada alentadoras. Naqueles dias percebi que a casa estava cheia de coisas dele. No quintal, seus brinquedos; na sala, um porta-retratos com uma foto de quando ele era filhote; no banheiro, um painel com quatro imagens: duas fotos individuais de Romeo, uma em que ele está beijando Lucía e outra em que eu o estou beijando. Uma noite em que Lucía e eu chorávamos em silêncio com os olhos cravados no teto do quarto, descobri que os dois estávamos pensando na mesma perversão.
“Quer saber de uma coisa?”, ela me disse. “Preferia que ele morresse de morte natural. Sei lá: que acontecesse alguma coisa, que essa separação não dependesse da gente. Para mim é muito triste pensar que outra pessoa vai mandar o Romeo sentar, vai lhe dar de comer ou vai jogar uma bola para ele catar. Espero que ele nunca se esqueça da gente.”
Estávamos arrasados, não víamos saída. Alguns amigos tentavam nos convencer de que não era tão grave assim. Fracassavam. Então tentavam nos consolar. E tornavam a fracassar. Eu sentia que a única coisa que me interessava era que alguém me dissesse que adotaria Romeo. Mas ninguém se habilitava. Então Verónica, que até recentemente tinha sido minha chefe – eu falava disso com minha chefe! –, sugeriu que eu procurasse Majo, uma colega da empresa engajada na proteção dos animais. Eu não conhecia a tal Majo, mas fiz o que minha chefe disse. Desci dois andares e acabei falando com uma perfeita desconhecida como se fosse minha irmã. Contei para ela que estava pensando em levar Romeo a um lugar chamado El Campito, onde – como se pode ver no Facebook – há centenas de voluntários que vestem uma camiseta laranja e se dedicam a cuidar alegremente de cachorros recolhidos na rua. Mas Majo explicou que o lugar já estava lotado, e me recomendou um adestrador.
“Procura o Maxi Aráoz. Ele trabalha com raças como dogo e pit bull, tem muita experiência no trato da agressividade de cachorros complicados. Uma vez eu o vi caçando um leão furioso. E ele também tem um albergue: você pode deixar o cachorro lá, para que Maxi o reeduque, e depois é possível que ele possa voltar a viver com você. Se não der certo, a gente vê outra família para ele.”
Só então Lucía e eu paramos de chorar. Afinal tinha surgido uma chance de salvar nossa relação com o cachorro. Liguei para o adestrador e combinamos um encontro.

Aprimeira coisa que Maximiliano Aráoz me disse foi: “O cachorro se apossou da tua mulher. Foi por isso que ele te mordeu: ela estava entre você e ele. Você precisa entender que ele está respondendo a um instinto, o líder tem que garantir a reprodução para a matilha sobreviver, percebe? Com sua atitude, de certo modo, ele também está cuidando de você. Agora ele é o líder. É isso que precisa mudar.”
Nessa primeira vez que fomos à escola de adestramento, deixamos Romeo em casa. Meu cunhado Rodo nos acompanhou. Queríamos conhecer o lugar, conversar com o adestrador e entender qual era a proposta dele. Enfim, ver se ele nos convenceria. “Se o cachorro ficar comigo por alguns meses, vai aprender outra forma de relacionamento, mas se voltar para casa e tudo continuar a ser como antes, dali a dez dias vocês vão ter o mesmo cachorro. Romeo precisa aprender a respeitar regras. Deem uma olhada nisso.”
Maxi Aráoz entrou na casa e voltou com uma lata cheia de comida para cachorro. Agitou o recipiente, fazendo barulho. Todos os cães se aproximaram e sentaram em volta dele. Olhavam boquiabertos para o adestrador. Ele jogou um punhado de comida no chão e gritou “Fora!”. Todos se afastaram e formaram um círculo ao redor da comida. Todos exceto um golden, que não conseguiu se conter e roubou um bocado. Nesse momento escutamos um rosnado, o cachorro baixou a cabeça e recuou rapidamente. Maxi Aráoz estava agachado e, com o lábio superior retraído, mostrava os dentes.
“Foi ele que rosnou?”, perguntou Lucía, baixinho. Confirmei com a cabeça. “Esse não mora aqui”, explicou Maxi Aráoz. “É de um estudante. Mas vocês viram como eles se comportam? A distância regulamentar da comida é de 2 metros de diâmetro.”
Enquanto ele falava, o montinho de ração permanecia onde ele havia jogado, e os cachorros continuavam olhando para a comida absolutamente idiotizados, babando. “Eles entenderam que a comida é minha. Só agora que provaram entender e me respeitar é que podem comer. Comam!”, ordenou, jogando outro punhado de ração. Aí sim os cachorros avançaram na comida.
Meu cunhado e Lucía estavam com os olhos brilhando. Imagino que eu também.

Maxi Aráoz nos convenceu de que a questão canina deve ser resolvida pelo homem. Por uma semana, nós nos encarregamos dos preparativos para que Romeo fosse passar um tempo na escola. O primeiro passo – e o mais importante – foi a castração, um momento talvez mais difícil para mim do que para o animal. Coube a mim levá-lo ao veterinário, e lá vi como resistia aos anestésicos. Primeiro lhe injetaram um calmante. Antes de o efeito da substância atuar, meu cachorro me olhou com os olhos vidrados, tremendo de medo. Ao colocá-lo sobre a maca, já anestesiado, senti-o como um peso morto em meus braços. Deixei Romeo nas mãos do veterinário sentindo-me um traidor. Voltei uma hora mais tarde, para resgatá-lo. Quando chegamos em casa, acomodei a cama dele ao lado do computador para que estivesse perto de mim enquanto eu escrevia. Romeo, ainda adormecido, lambia a ferida e me observava com olhos pequenos. Examinei o escroto vazio e suturado do meu cachorro. Experimentei o peso de ter tomado uma decisão irreversível sobre um corpo alheio.
Alguns dias depois, na segunda-feira seguinte, levamos Romeo aos domínios de Maxi Aráoz. Se tudo corresse bem, o cachorro já ficaria por lá para iniciar o tratamento. Quando chegamos, Aráoz veio nos receber na calçada e pediu para darmos uma volta e deixar o cachorro com ele. Romeo portava uma focinheira, mas assim que o adestrador se aproximou ele tentou lhe acertar uma dentada. Maxi nem piscou. O cachorro então se deixou levar e, quando o portão cinza se fechou, Lucía e eu fomos esperar na esquina. Eram quase onze horas de uma segunda-feira quente. Na rua praticamente deserta, dois vizinhos conversavam à sombra de uma árvore. Um deles era um velho meio banguela. O outro, um sujeito de uns 40 anos, de cabelo comprido, cara de quem acabou de acordar. Tinha uma tatuagem enorme no braço direito e vestia só um calção, nada mais – nem camiseta nem chinelos.
Olhei para os dois. Eu estava com calor, vestido para o trabalho; pensei que quando chegasse aos 40 queria levar a vida daquele homem: levantar no meio da manhã e tomar mate de calção com o velho que mora ao lado. Maxi Aráoz abriu o portão e acenou para que nos aproximássemos. Estávamos ansiosos para saber as novidades. O adestrador acendeu um cigarro e disse: “Bem, vamos entrar. Deixei os dois chefes da matilha livres para que fossem conhecendo o Romeo, e eles o aceitaram sem problemas. Quando vocês entrarem, pode ser que ele venha se esfregar em suas pernas. Não permitam: vai fazer isso para deixar seu cheiro e comunicar aos outros que vocês lhe pertencem.”
Lá dentro, além dos dois cachorros, havia um homem gordo tomando mate. Vestia uma camiseta com seu nome – Daniel – e o logotipo da Gulliver Dog Team, a escola de adestramento. Assim que nos viu entrar, Romeo aproximou-se de rabo abanando, direto para se esfregar nas minhas pernas e nas de Lucía. “Afasta, não deixa ele fazer isso”, disse Aráoz. Eu disse “Fora” e lhe dei alguns empurrõezinhos. O cachorro me olhou confuso e depois foi até Lucía, e começou a se esfregar nela. Daniel observava a cena. “Ele ignora seus comandos completamente”, disse para ela. Todos vimos que era verdade: quando Lucía lhe dava uma ordem, o cachorro parecia surdo.
Maxi Aráoz nos ofereceu mate e começou a nos dar seu diagnóstico: “Crianças, tenho uma notícia boa e uma ruim. A boa é que Romeo não é um cachorro agressivo. A ruim é que é um cachorro dominante e inseguro. É por isso que ele ataca. Ele acha que precisa tomar as decisões, mas tem medo e não sabe ser líder sem recorrer à violência. Além disso, apossou-se de vocês, e isso criou um círculo insano. Espiem só.”
Maxi se afastou com Romeo e afagou sua cabeça. O cachorro não fez absolutamente nada. Depois se aproximou de nós e, quando tentou repetir o gesto, Romeo virou uma fera durante cinco segundos. Como se fosse um mágico que faz questão de mostrar que não há truque, Maxi repetiu a cena mais uma, duas, três vezes.
“O cachorro me ataca quando estou perto de vocês, mas quando nos afastamos não me faz nada. Isso prova as duas coisas que acabei de dizer: que ele não é agressivo e que, quando está com vocês, pensa que deve proteger a matilha. Além disso, eu já o coloquei com os outros dois cachorros superdominantes, e não houve conflito: Charly até chegou a montar nele, e o Romeo não o atacou. Eu acho que ele não vai ter problemas, que vai aprender bem, mas é um cachorro com o qual vocês vão ter que ser firmes pelo resto da vida.”

Não tive a menor dúvida de que o cão iria aprender, só não tinha certeza de conseguir ser o líder que Romeo estava precisando. Maxi Aráoz disse que o segredo estava nos quatro pês: paixão, paz, perseverança e paciência. Do primeiro, eu dava conta, mas dos outros três sabia que seria mais difícil. Eu logo me canso das coisas e me frustro com facilidade. Minha mãe sempre lembra um episódio da minha infância: eu tinha 5 anos, havia desenhado um Pato Donald e levei para ela ver. Quando ela me disse que estava muito bonito, eu o rasguei em mil pedaços e gritei que o desenho era uma merda.
Agora costumo fazer a mesma coisa com meus escritos, só que pulando a parte de pedir a opinião alheia. Detesto fracassar. Além disso, assisto ao noticiário xingando a tevê. Não sou um espírito harmonioso e não penso em fazer nada para conseguir um equilíbrio que me parece falacioso. Com o passar dos anos, aprendi a conviver com meu próprio gênio ruim, e Lucía também: já nem se preocupa quando me escuta gritar. Simplesmente me deixa sozinho e sabe que dali a dez minutos tudo volta ao normal.
Disse a Maxi Aráoz que temia não possuir os requisitos de um líder equilibrado, e então percebi que os adestradores de cães têm muito em comum com os psicanalistas. A experiência lhes permite detectar os pontos fracos de uma pessoa, mesmo que com base apenas numa breve insinuação. E usam essa informação para demonstrar sua superioridade, para deixar claro ao outro que vão construir uma relação de dependência durante o período que durar a terapia; talvez a vida inteira. Quando conseguem seu objetivo, enfim, quando o outro se reconhece inferior, mostram que podem ser compassivos.
“Olha, eu tive casos graves mesmo”, falou Maxi Aráoz. “Não te contei a história da mulher do shar-pei? Uma vez uma moça me ligou dizendo que tinha um problema muito grave com o cachorro dela, que ele atacava todo mundo e ela não sabia mais o que fazer. O shar-pei, além do mais, é um cachorro com uma mordida complicada. Falei que eu poderia receber o bicho e perguntei onde devia pegá-lo. Pedi para o Dani ir lá. Só para você ver que não estou mentindo, vamos perguntar a ele onde teve de ir procurar o cachorro.”
“Num apartamento na San Juan com a Jujuy”, disse Daniel, enquanto caminhava com Romeo, marcando o passo. “A mulher tinha alugado um quarto e sala embaixo do dela, para o cachorro morar sozinho.” E Maxi continuou: “Mas o pior não é isso. Ela estava pensando em operar a mandíbula do cachorro para tirar todos os dentes dele. O bicho ia ter que comer mingau pelo resto da vida. Depois, no segundo dia que o cachorro estava aqui, a mulher já tinha me ligado quatro vezes. Sutilmente, sugeri que ela fosse fazer terapia.”
Lucía e eu demos risada. Ficamos sabendo que éramos donos piores que Maxi Aráoz, mas melhores que a mulher do shar-pei. Fomos embora, Romeo ficou. Enquanto o carro arrancava, vislumbrei o focinho marrom do meu cachorro enfiado na fresta entre o portão e o solo.

Com o passar dos dias, comecei a me sentir livre. Sabia que, pelo menos por um tempo, antes de entrar em casa não precisaria me certificar de que Lucía e Romeo não estavam no mesmo ambiente. Sentia falta de viver sem precisar tomar precauções. Além disso, tinha certeza de que o cachorro estava num lugar legal. Já para Lucía estava sendo bem mais difícil. Na primeira semana, ela voltava do trabalho com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.
Mas isso foi só no começo.
À medida que o tempo foi passando, nossa relação melhorou muito. Já que não havia mais discussões sobre o “tema cachorro”, quase não brigávamos. A certa altura, começamos até a conversar sobre nossas sensações a respeito da ausência de Romeo, sem dramatizar. Estávamos de acordo que o triângulo amoroso e possessivo em que convivíamos estava solapando os alicerces da nossa vida social: tínhamos virado um par de obsessivos que enchia a paciência de todos os amigos, falando incessantemente dos problemas do mundo canino.
Aos poucos fomos nos transformando em algo parecido ao que éramos quando começamos a namorar. Lucía e eu nos conhecemos havia sete anos no call center onde trabalhávamos como pesquisadores. Durante os primeiros meses, nem nos falávamos: não tínhamos amigos em comum, sentávamos longe um do outro. Mas algum tempo depois calhou de sentarmos perto, e começamos a nos conhecer. Aí passamos a nos relacionar com as mesmas pessoas e a fazer alguns programas juntos. Depois começamos a nos aproximar de outras formas. Toda noite marcávamos encontro nochat e ficávamos horas conversando, trocando vídeos do YouTube e dando muita risada. Mas eu não tinha coragem de convidá-la para sair, tinha medo de passar ridículo com uma colega de trabalho. Como eu sabia que não aguentaria muito mais tempo naquele emprego, pensava em convidá-la para sair logo depois de pedir demissão. Mas Lucía se cansou de esperar e um dia falou que queria ir comigo a uma festa.
“Você era um banana. Se dependesse de você, não teria acontecido nada até hoje”, costumava me dizer nos primeiros tempos da nossa relação. Desde o começo, além de namorados, fomos amigos. Sempre nos falamos com a franqueza que só a amizade permite e nunca tivemos ciúme além do necessário. Passávamos muito tempo um com o outro. Pouco depois de assumirmos a relação, alugamos um quarto e sala e fomos morar juntos. Levávamos uma vida gostosa, sossegada. Mas um ano depois de nos mudarmos trouxemos Romeo para viver com a gente.
Agora que o cachorro não estava em casa, aqueles primeiros tempos de liberdade voltaram. Aproveitamos para dormir até tarde sem culpa porque alguém estava esperando para fazer cocô na calçada, efizemos algumas refeições no quintal sem a preocupação de que Romeo pudesse roubar a comida ao menor vacilo. Além disso, eu tinha acabado de mudar de emprego – agora sou assessor de imprensa de um centro cultural, um trabalho que tem muito mais a ver comigo – e finalmente criei coragem para mostrar um texto meu numa publicação que é lida por mais de quinze pessoas. Tudo era positivo. As visitas a Romeo também.
Quando o deixamos na escola, fomos proibidos de visitá-lo durante os primeiros dez dias. O cachorro precisava se desapegar e cortar os vínculos da relação perversa. Mas, passado esse tempo, começamos a vê-lo todos os sábados, semana após semana. E fomos notando a melhora em seu comportamento. Nós também aprendemos que precisamos nos concentrar para administrar o afeto do cachorro e para evitar o apego. Por mais que, bem ou mal, hoje eu consiga fazer isso, ainda me pergunto se é possível dosar o amor, como se faz com a pasta de dente ou a maionese. Durante um tempo, as visitas dos sábados foram um contato suficiente. Tínhamos a tranquilidade de saber que o cachorro estava sendo bem tratado, que aprendia e convivia com um bando de cães equilibrados que o ensinavam às dentadas, coisa que nós não pudemos fazer.

Toda vez que chegávamos à escola, Romeo corria em círculos, bufava, gemia, latia pedindo atenção, até que se cansava e se deitava. Depois de algum tempo, começava a dar sinais de relaxamento. Só então Maxi Aráoz nos permitia cumprimentá-lo. “É o método NNVEDG. Significa Nada Na Vida É De Graça”, explicou-nos o adestrador. Em síntese, trata-se de não atender a nenhuma solicitação do cachorro: se ele pedir comida, não tem; se ele quiser entrar no quarto, está proibido; se ele quiser brincar, não pode. Basta deixar passar cinco minutos, tomar a iniciativa e, dentro do possível, fazê-lo trabalhar para conseguir o que ele quer. Para ir passear, tem de sentar e dar a pata; se estiver com fome, deve esperar a ordem para comer.
Eu sentia que estávamos nos transformando em seres autoritários e histéricos. Mas isso ainda não era o pior. “Faz com que ele respeite a tua comida”, o adestrador me ordenou. “Daquele jeito que mostrei para vocês da primeira vez que vieram aqui.” Peguei um punhado de ração e mostrei para Romeo. O cachorro lambeu os beiços e se sentou na minha frente. Levei a mão à boca e comecei a imitar o barulho da mastigação. O cachorro me olhava fixo. “Agora rosna. Ele tem que recuar até ficar a 2 metros de você.”
Então me perguntei se queria mesmo fazer aquilo. Imaginei meu pai me olhando e balançando a cabeça, como faz sempre que faço uma besteira na frente dele. Sabia que era um caminho sem volta: a gente começa rosnando uma vez, e acaba rosnando todo dia. Além disso, não via necessidade de competir. Para que isso, se havia ração suficiente para os dois? Olhei para Romeo e para o adestrador. Senti-me encurralado entre meu pai e Maxi Aráoz. Então retraí o lábio e mostrei os dentes. Rosnei. Romeo inclinou a cabeça e ficou imóvel. Voltei a rosnar, mais alto: nada. Maxi Aráoz me afastou, pegou um pouco de comida, deixou o cachorro se aproximar e rosnou para ele. Romeo recuou dois passos e desviou os olhos. Um cão que olha nos olhos é um cão que desafia. Um cão que desvia o olhar é um cão que respeita. O adestrador me olhou e sorriu, triunfante.
Com o passar dos dias e das demonstrações, Lucía e eu confirmamos nossa dependência de Maxi Aráoz. E não nos incomodava. Estávamos adaptados a nossa nova vida. Já quase nem me lembrava por que havia chorado tanto dois meses antes. Além das visitas aos sábados, telefonava uma ou duas vezes por semana para a escola, para saber dos progressos de Romeo. Quando já havia passado um mês de internato, Maxi Aráoz me deu a notícia de que o cachorro podia voltar para casa. “Eu podia te dizer que ele precisa ficar mais um mês, mas estaria te roubando”, disse. “O fofo já está pronto para continuar o processo em casa.”
Confiei no critério dele; Maxi disse que fizemos um bom trabalho. Isso me deixou contente, mas também um tanto inseguro. Tratei de imaginar uma vida prazerosa a três, uma vida em que meu cachorro fosse meu companheiro inseparável, minha alma gêmea e meu irmão de quatro patas, mas minhas recordações me diziam outra coisa. Só que não tinha alternativa, portanto combinei com o adestrador que iria passar para pegar Romeo no sábado seguinte. Desliguei, fui até a sala e me pus a olhar as fotos dele. Pensei na felicidade que ele sentiria se soubesse que dali a três dias estaria de volta. Então se despediria dos colegas, alguns lhe pediriam para não deixar de visitá-los de vez em quando, para levar cartas para seus parentes e trazer alguma coisa: cigarros, revistas, cartões telefônicos. Pensei que ele concordaria com tudo, e que ao sair se esqueceria de todos.
Compramos uma casinha de plástico branco com telhado azul. Colocamos no quintal, ao lado da porta da sala, onde antes ficavam a churrasqueira e as bicicletas. A churrasqueira foi transferida para o outro lado, e as bicicletas foram parar no meio do quintal. Lucía juntou alguns lençóis e travesseiros velhos – e nem tão velhos – e fez um colchão macio. Preparamos a volta do cachorro como se prepara o nascimento de um bebê. Quando estava tudo pronto, fomos buscá-lo com meu cunhado. Romeo nos viu chegar e fez a mesma coisa de sempre: correu em círculos, pulou, gemeu e bebeu água. E depois sentou. Então eu o afaguei um pouco, coloquei a coleira nele e entramos no carro. Arrancamos. Depois de um mês no reformatório canino, meu cachorro estava voltando para casa.

Agora estamos na praça perto de casa. Desde que Romeo voltou, todo dia, quando chego do trabalho, troco de roupa e saímos, para que ele corra e brinque com outros cachorros. A praça tem dois canis – dois quadrados cercados em que a grama não cresce mais –, onde o solto sem problemas: faz parte da reabilitação aprender a se relacionar com outros animais. Como sempre venho na mesma hora, já conheço meus companheiros e seus cachorros: o careca que traz Lila, o gordo que vem com as duas bóxer, a senhora que traz Apolo, o garoto que está com Olaf e Mateo, e o velho que traz Wanda. Eles também nos conhecem. Às vezes todos escolhem o outro quadrado porque Romeo corre e rosna, e alguns cachorros – e principalmente alguns donos – não gostam do rosnado. Hoje, por exemplo, no quadrado do lado há cinco cachorros e três pessoas, mas Romeo e eu estamos sozinhos. Tudo bem: eu trouxe uma bola, e nós dois nos divertimos. Jogo a bola e peço para ele pegar. Ele obedece.
“Solta”, ordeno. Romeo hesita, ameaça sair correndo, mas acaba deixando-a cair. “Muito bem, Romeo”, digo em voz alta. Fora do canil, duas mulheres me escutam e sorriem. O nome completo do meu cachorro é Bernardo Romeo, uma homenagem ao último ídolo do San Lorenzo, meu time. Romeo não foi um grande jogador, não tinha uma técnica chamativa nem um físico privilegiado. Não brilhou nas grandes ligas nem fazia declarações brilhantes à imprensa. Na verdade, era um anti-herói, um esquisitão que o jornalista Eduardo Bejuk descreveu como “um gnomo terrível, habitante da área, que corre como um garoto, define como um velho e beija a camiseta sem um pingo de especulação nem teatralidade”. Foi um artilheiro que pendurou as chuteiras com 99 gols no clube, depois de fracassar por várias partidas na tentativa de arredondar o centésimo.
Mas Bernardo Romeo não entrou no panteão dos ídolos rubro-azuis por causa dos gols, e sim por causa de suas atitudes. Reza a lenda que em 2001 o Hamburger SV alemão, que estava a ponto de comprá-lo, propôs esperar mais seis meses, para que o jogador ficasse livre. Assim o clube economizaria o dinheiro do passe, dava uma comissão para Romeo e o San Lorenzo ficava sem nada: sem artilheiro e sem o dinheiro da venda. Todos sairiam ganhando, menos o clube. Romeo podia muito bem ter aceitado. Mas disse que não. É esse homem que o nome do meu cachorro homenageia.
“Romeo, vem cá!”
Agora ele está rosnando para Olaf, o pit bull que acaba de entrar no canil. O problema mais grave da personalidade de Romeo – que o faz rosnar para os outros cachorros ou para pessoas – não é a dominância, e sim a insegurança. Ele é extremamente desconfiado: nunca deixa um estranho encostar nele nem permite que cachorros farejem seu rabo à toa. Nisso Romeo e eu nos parecemos. Tem gente que diz que ninguém pode se considerar meu amigo se nunca o mandei à puta que o pariu. É verdade: eu insulto as pessoas só quando tenho certeza de que não vão se ofender nem vão querer me cobrir de porrada. Nunca me atraquei aos socos com ninguém nem mandei à merda nenhum chefe ou policial. Nisso também nos parecemos: Romeo rosna e late, mas nunca morde. Quer dizer, quase nunca.
O cachorro também herdou parte da personalidade de Lucía. Tem medo de quase tudo. O apelido que ela mesma se deu é “Lucía Miedo”, e antes de ter Romeo ela não chegava perto de nenhum animal. Agora ama os cachorros, ainda que seu maior inimigo more na esquina de casa: é um cão que passeia sozinho. Todos os dias seus donos abrem a porta, e ele sai para zanzar pelo bairro. Parece muito com um lobo – pelagem branca e cinza, olhos claros – e não gosta que Romeo passeie em seu quarteirão. Várias vezes, ao ver Romeo, ele veio correndo para enfrentá-lo e os dois se atracaram numa confusão de dentadas e latidos. Por isso Lucía agora evita passar perto de sua casa e, quando o encontra, diz “Vamos, Romeo”, e muda de calçada. Antes eu agia do mesmo modo, mas agora que estou no curso de instrução canina na escola de Maxi Aráoz estou proibido de fugir das situações que possam provocar medo ou conflito no cachorro; os dois temos de aprender a enfrentá-las. E pouco a pouco vamos conseguindo.

Agora, por exemplo: acabou de entrar no canil uma mulher com três cadelas. Romeo vai farejá-las. Logo se vê que alguma coisa não o agradou, pois ele começa a latir para a maior, uma cadela cinza que sai correndo e se refugia entre as pernas de sua dona, que se senta ao meu lado. Se fosse há alguns meses, eu teria colocado a coleira no meu cachorro e o teria levado embora. Mas hoje não: deixo que ele assuma as consequências dos seus atos.
A cadela está tremendo. A mulher a acaricia e lhe diz que não é nada, que não precisa ter medo. “Posso dar um conselho?”, pergunto. Se ela disser não, vou dar assim mesmo. “Quando a cadela entrar em pânico, não a acaricie, porque assim você reforça o medo. Fique calma, o cachorro vai latir um pouco para ela, mas não vai fazer nada.”
A mulher sorri e para de acariciar a cadela. “Incomoda se eu a chamar com um pouco de comida, para ver se ela pega confiança?”, pergunto. A mulher me agradece: tudo o que puder fazer para ajudá-la a sair do pânico será bem-vindo. Pego um punhado de ração do bolso e chamo a cadela. Ela olha, fareja e finalmente se aproxima. Come da minha mão.
“Que bom! Que é isso? Biscoitinhos?”
“Não, ração.”
“Ai, não…”, ela se horroriza. “É da comum?”
“É, sim. Por quê? Faz mal para ela?”
“Não, é que as cadelas e eu somos veganas. Eu sou vegana por vontade própria, mas elas, por obrigação.”
Peço desculpas e penso que, no fim das contas, a história que Romeo e eu vivemos não é tão grave assim.
Desde que meu cachorro voltou para casa, experimento um sentimento ambíguo: por um lado, estou feliz porque posso vê-lo, tocá-lo e falar com ele todo dia, e porque aproveito os passeios como nunca. Mas às vezes, depois de um dia de trabalho, gostaria de ficar sozinho e em paz, e de comer pão doce sem ter de rosnar para deixar claro que é meu. Conviver com um cachorro deveria ser uma coisa bem mais simples. Mas eu vivo numa tensão permanente entre o que sou e o que deveria ser; entre minha liderança fingida e sua obediência provisória.
Às vezes me pergunto quão mais difícil deve ser ter filhos. Logo vou fazer 30 anos. Ainda não tenho planos de ser pai, e no fundo não sei se estou preparado para que outra vida dependa de mim. Examinando retrospectivamente minha história com Romeo, tenho a impressão de que tudo isso que aconteceu foi um jeito de crescer: afinal de contas, já sou um adulto. Mas agora, enquanto brinco com ele nos limites desse pacto de maturidade que forjamos, não posso evitar o desejo de baixar a guarda e esticar a adolescência um pouco mais. Desconfio que o mesmo se passe com Romeo.
(amor canino: romeu, minha namorada e eu,  e as dificuldades de uma vida a três, do pablo sioscia, na revista piauí)


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