
Trabalhei na TV Manchete em um período em que
eles queriam fazer teledramaturgia. O diretor, então, me pediu que eu
escrevesse uma novela. Eu não quis. Mas fiz algumas sinopses: Dona Beija
(1986), Kananga do Japão
(1989), Marquesa de Santos
(1984). Eu dava as ideias e contratava os diretores. Contratei a Glória Perez, o Wilson Aguiar Filho
(1941 – 1991)... Dava ideias, mas me recusava a escrever. Tinha
preguiça. Mas a vida continua, tem um processo, uma dinâmica. O tempo
foi passando, o casamento acabou e eu passei a amar cachorros. Eu
detestava cachorros, mas depois acabei descobrindo neles uma porção de
virtudes. Há um tempinho, fiz uma crônica na Folha de S. Paulo
comparando o cão à máquina de escrever. O computador é o gato. Porque a
máquina de escrever é fiel, como o cachorro. E o computador é
independente, tem vida própria, como o gato. A máquina só faz o que você
pede, já o computador apaga umas coisas, aparecem outras que você não
quer. Aparece um Papai Noel tocando um sininho. Às vezes, eu estou
fazendo uma coisa séria e vem aquele Papai Noel batendo o sininho. Quem
botou aquele Papai Noel ali? Não sei, é vírus. Minha máquina de escrever
nunca teve vírus. Envelheceu dignamente. Só que, por causa desse texto,
recebi e-mails desaforados, dizendo que cachorros são poluidores e não
servem para nada. E eu fiquei indignado porque, afinal de contas, amava a
minha cachorra. Quando voltei a escrever, dediquei meu livro à minha
cachorra. Comecei quando ela ficou doente. Eu estava começando a mexer
com o computador. Eu queria dormir, mas a cachorra não me deixava. E eu
ligava o computador. Mas, quando ela percebia que eu queria desligá-lo,
começava a gemer. Aí eu tinha que ligar o computador de novo. Eu
escrevia de tudo, passei a limpo uma porção de coisas e, de repente, não
tinha mais nada para passar a limpo. Eu dormia de dia e cuidava da
cachorrinha à noite, e foi aí que recomecei a escrever. Foi assim que
saiu o romance. Quando ela morreu, botei o ponto final. Não escrevi uma
linha a mais. O Ruy Castro, uma pessoa muito extrovertida, leu e disse que estava muito bom. Levou para o Luiz Schwarcz, (o editor)
da Companhia das Letras, e ele editou o Quase
Memória
,
que teve um bom retorno. Com o dinheiro que ganhei com essa primeira
edição, tomei um navio – gosto muito de navios – e levei um notebook.
Escrevi O Piano e a Orquestra
(1996). Depois
me descobri, novamente, num brinquedo. Mas tem uma coisa: não é que eu
vá parar de repente. Agora eu não posso, porque tenho vários
compromissos. Trabalho muito sob encomenda. Há uma verdadeira
demonização de quem escreve sob encomenda. Mas a arte ocidental foi
quase toda feita de encomenda. A arte grega, a Renascença. Mozart morreu fazendo uma missa fúnebre de encomenda. Os Sertões
foi uma obra encomendada. Coelho Neto e Olavo
Bilac escreveram muitos livros – inclusive pornográficos – de encomenda.
(Trecho da entrevista de Carlos Heitor Cony, concedida a José Castello e publicada em O Rascunho).
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